Dos
vários desafios como pais de primeira viagem, Juliano Lustosa, de 35 anos, e
Mariana Franco, 32, não contavam com ter dificuldades para conseguir vacinar o
pequeno Davi com a BCG, dada aos recém-nascidos ainda na maternidade para
prevenir tuberculose, junto com a vacina da hepatite B.
"Quando estávamos
prestes a deixar a maternidade, em junho, fomos informados pela enfermagem que
a vacina estava em falta e que deveríamos procurar uma unidade de saúde em uma
semana", contou Lustosa à BBC News Brasil por telefone.
Passada uma semana, ainda
não havia previsão de disponibilidade das vacinas em São José dos Campos (SP),
onde a família mora. Foi aí que começou para o casal uma jornada de informações
desencontradas, viagens de carro e pelo menos 15 ligações para unidades de
saúde públicas e particulares em busca da dose.
Davi, que nasceu em 11 de
junho, finalmente foi imunizado com a BCG no dia 24 do mesmo mês - e em outra
cidade, Taubaté (SP), em uma unidade pública. A disponibilização gratuita desta
vacina está prevista no Sistema Único de Saúde (SUS) e sai do governo federal,
passando para os Estados e finalmente chegando aos municípios. Empresas
particulares também costumam oferecer a BCG com um valor de aproximadamente R$
100 a dose.
"Se eu não conseguisse
lá, teria ido até São Paulo. Havia ligado para sete clínicas particulares no
Estado, que disseram não ter a vacina, mas uma na capital falou que
tinha", explica Lustosa. "Como nosso primeiro filho, somos
inexperientes, então queremos fazer tudo certo."
A situação vivida pela
família não se resume a São José dos Campos e nem ao Estado de São Paulo. Após
contato da reportagem com as secretarias de saúde de todos os Estados, ao menos
12 confirmaram não ter recebido em pelo menos um mês do ano a quantidade total
prevista de doses enviadas pelo governo federal: Amazonas, Ceará, Distrito
Federal, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Pernambuco,
Rio Grande do Sul, Rondônia e São Paulo.
Do total de 20 Estados que
responderam à reportagem, outros oito afirmaram que a entrega pelo governo
federal está regular ou teve alterações muito pontuais (Alagoas, Bahia,
Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e
Tocantins).
O alcance e duração da
redução no abastecimento variam, mas a maioria das secretarias apontou
alterações a partir de abril e dizem que, apesar destas descontinuidades, não
há "falta" de vacinas BCG, mas sim um racionamento. A maioria dos
municípios tem recorrido a agendamentos - já que, uma vez abertas, as doses da
BCG têm validade de 6 horas, portanto os órgãos buscam otimizá-las.
A Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo, por exemplo, sob cujo guarda-chuva Davi nasceu, afirma que
a "responsabilidade da aquisição e distribuição" da vacina é do
Ministério da Saúde, e o Estado "apenas redistribui para os municípios, à
medida que os lotes chegam".
"No último mês, o envio
das doses pelo órgão federal para São Paulo tem sido irregular e em quantidades
insuficientes, impactando na redistribuição. Até que haja regularização pelo
Ministério, o Estado está buscando o remanejamento entre regiões", diz
nota da secretaria.
Inicialmente, o Ministério
da Saúde afirmou à reportagem que "o quantitativo autorizado no mês de
junho foi reduzido devido à parte do estoque que ainda se encontrava em análise
pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS)",
instituição vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e que analisa a
qualidade e segurança das vacinas que serão disponibilizadas em todo o país.
Procurada, a Fiocruz afirmou
que o INCQS vem cumprindo todos os prazos firmados. A BBC News Brasil retornou
então ao ministério com esta nova informação e a pasta enviou um novo
posicionamento atribuindo a redução no envio das doses à etapa de importação do
produto.
"O Ministério da Saúde
aguarda documentação da Organização Pan-Americana de Saúde para liberação das
doses que já estão no Brasil. O processo faz parte do trâmite para liberação
das doses na alfândega", afirmou o órgão.
ONDE ESTÃO OS GARGALOS
Renato Kfouri, presidente do
departamento Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), destaca
que, da produção das doses à sua injeção, há várias etapas que podem levar a
atrasos - o que, no Brasil, é agravado pela burocracia.
Neste caminho, há a
importação de vacinas - no caso da BCG, da Índia -, fiscalização alfandegária,
inspeções sanitárias, certificações, além de todo o transporte e armazenamento
exigido nesta cadeia.
Em 2018, por exemplo, houve
também irregularidade no abastecimento da BCG por conta da interrupção da
produção destas vacinas na Fundação Ataulpho de Paiva, no Rio de Janeiro. Em
2016, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) suspendeu as
atividades da fundação após uma inspeção, o que impactou o fornecimento.
"O desabastecimento é uma situação constante, não só para a BCG, e nem apenas no Brasil, mas no mundo. O lado bom é que o consumo de vacinas no planeta vem aumentando, e a exigência por qualidade e segurança também. Mas isso não vem acompanhado na mesma velocidade pelo parque industrial mundial", explica.
"Claro que no Brasil
algumas etapas poderiam ser mais rápidas, mas isso certamente não resolveria
todas as questões, pois há um problema maior nas condições de produção",
diz Kfouri, destacando a importância da transferência de tecnologia e da
produção nacional de doses para chegar mais perto de uma autossuficiência.
O pediatra diz que a vacina,
de dose única, deve ser aplicada no bebê o quanto antes - de preferência na
maternidade mas, se não for possível, dentro de aproximadamente um mês. Isto
para evitar o seu contato com a bactéria da tuberculose, que ainda tem presença
significativa no Brasil e é transmitida de pessoa para pessoa.
Cristina Albuquerque, chefe
de Saúde do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, também
é cautelosa e diz que não há, no país, qualquer situação de "colapso"
no fornecimento da BCG ou de outras vacinas.
"Os imunobiológicos são
um tipo de produto extremamente difíceis de manipular, transportar, manter a
temperatura... Eventualmente, ocorrem falhas pontuais em algum momento dessa
cadeia".
Ainda assim, Albuquerque
destaca a importância de apurar as causas da irregularidade no abastecimento e
da volta à normalidade.
"A BCG era a única
vacina que vinha mantendo a meta de cobertura, justamente porque você pega a
criança ainda na maternidade. Todas as outras tiveram queda de cobertura nos
últimos meses. Até agora, estávamos comemorando que pelo menos a BCG estava
mantendo a cobertura ", explica.
"Esta vacina protege
especialmente de casos graves de tuberculose, como a miliar, que é muito
difícil de tratar", acrescenta.
Diferente das vacinas contra
tuberculose e hepatite B, outros tipos de imunização não podem ser aplicados ao
nascer pois os organismos dos bebês ainda não estão maduros o suficiente para
receber estas doses, explica a representante da Unicef.
OUTRAS VACINAS COM
FORNECIMENTO IRREGULAR
Doze Estados apontaram ainda
fornecimento irregular de outras vacinas, principalmente a pentavalente e a
DTP.
A primeira previne contra
várias doenças, como o nome indica (difteria; tétano; coqueluche; hepatite B;
meningite e infecções por HiB - Haemophilus tipo B) e é normalmente aplicada em
três doses, a partir do segundo mês de vida.
Já a DTP é uma vacina de
reforço para a prevenção da difteria, tétano e coqueluche - dada aos 15 meses e
depois aos 4 anos de idade.
O Ministério da Saúde
afirmou em nota que a pentavalente é importada e, por isso, precisa passar
também pela análise do INCQS antes da distribuição. Ainda segundo a pasta, os
estoques do país serão regularizados na próxima semana, com o envio de mais 475
mil doses para os Estados.
Já a Fiocruz ratificou que
está cumprindo os prazos de análise da pentavalente e, que inclusive,
intensificou o volume de trabalho à pedido do ministério.
Já em relação à DTP, o
ministério disse que "a distribuição foi reduzida devido a um problema de
excursão de temperatura nas doses (variação de temperatura no transporte para o
Brasil)".
Em todos os casos, o órgão
federal recomenda que municípios façam o agendamento das aplicações para
otimizar o aproveitamento das doses.
Fonte : G1
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