Após
5 anos, o fotógrafo que ficou cego ao ser atingido no olho esquerdo por uma
bala de borracha atirada pela Polícia Militar (PM) de São Paulo declarou neste
mês que “pouco se fala” sobre as mais de 800 pessoas feridas no Brasil durante
a onda de protestos populares que ocorreram no ano de 2013.
“Infelizmente, pouco se fala
das consequências daquela manifestação e daquela repressão à manifestação, do
ponto de vista das vítimas, das vítimas que tiveram consequências físicas
brutais, como é o meu caso, de uma perda de uma capacidade de enxergar”, diz ao
G1 o fotojornalista Sérgio Silva, de 36 anos, que perdeu a visão enquanto
cobria manifestação do Movimento Passe Livre (MPL) na noite de 13 de junho de
2013, no centro da capital paulista.
Além de Sérgio, outros
profissionais de imprensa, manifestantes e pedestres foram feridos, agredidos
ou presos injustamente pela PM naquele protesto reprimido com violência nas
esquinas das ruas da Consolação, Maria Antônia e Caio Prado.
A repressão violenta da
Polícia Militar contra a passeata do MPL, que pedia a redução da tarifa do
transporte público em São Paulo, gerou críticas da sociedade civil e provocou
uma série de manifestações populares semelhantes no Brasil. Outras bandeiras
sociais e reivindicações passaram a figurar em diversos estados.
Apesar disso, surgiram novos
episódios de violência policial contra manifestantes nas demais cidades.
“UMA SÉRIE DE OUTRAS VÍTIMAS
VIERAM APÓS JUNHO”, FRISA SÉRGIO.
O fotógrafo que acabou
conhecendo outras pessoas que, assim como ele, perderam a visão, atingidas por
balas de borracha e estilhaços de bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral
disparadas pelas forças de segurança locais.
Em casos mais graves, foram
registradas mortes no cenário das manifestações em 2013 no país.
800 FERIDOS
Levantamento divulgado em
2014 pela ONG internacional de direitos humanos Article 19, que trabalha pela
defesa e pela garantia do direito à liberdade de expressão, mostra que 837
pessoas foram feridas no Brasil em 2013 em meio a manifestações.
“Os números, eles indicaram
um cenário de muita violência, de muito abuso, de muita arbitrariedade” diz
Camila Marques, advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da
Article 19, sobre a atuação policial nos protestos pelo país.
"ESSES PROTESTOS FORAM
RECEBIDOS DE UMA FORMA BASTANTE RESTRITIVA, DE UMA FORMA BASTANTE PROBLEMÁTICA
PELO PODER PÚBLICO", FALA CAMILA.
De todos os feridos em 2013,
117 foram jornalistas. Um deles foi justamente o fotógrafo Sérgio, que ficou
cego ao cobrir protesto do MPL contra o aumento do preço da passagem de ônibus,
trem e metrô de R$ 3 para R$ 3,20.
À época, Sérgio era
freelance e vendia suas fotos para agências de notícias e jornais. “Após fazer
essas fotografias, eu baixo a câmera do rosto e aí eu sinto o impacto da bala
no meu olho”, recorda Sérgio sobre a dor que sentiu após ser atingido por uma
bala de borracha disparada pela PM, que o cegou enquanto trabalhava.
Naquela ocasião, a Polícia
Militar usou balas de borracha, além de bombas e cassetetes contra manifestantes
que queriam caminhar até a Avenida Paulista.
Em 2013, a PM alegou que
reagiu a agressão por parte mascarados adeptos da tática black bloc, que
consiste no ataque às forças de segurança e depredação do patrimônio público
como forma de protesto.
Porém para quem esteve
acompanhando o ato, como Sérgio, a manifestação seguia pacífica, tanto que ele
sequer usava equipamento de proteção, como capacete e óculos.
“A polícia insistiu em jogar
mais bombas, insistiu em atirar bala de borracha a essa distância muito curta
das pessoas", lembra Sérgio, que além da perda da visão foi obrigado a
retirar o globo ocular. Ele estourou pelo impacto da bala, e teve de ser
substituído por uma prótese.
"E NÃO BASTASSE ISSO, A
QUANTIDADE DE TIROS E BOMBAS QUE ERAM LANÇADAS ERA UMA COISA ASSIM
ASSUSTADORA”, REFORÇA O FOTÓGRAFO.
Sérgio entrou na Justiça com
uma ação indenizatória por danos morais pedindo R$ 1,2 milhão do Estado de São
Paulo além de uma pensão mensal e reembolso por despesas médicas em razão de
ter sido atingido por bala de borracha da PM que lhe tirou a visão.
Mas em 2016, o juiz Olavo
Zampol Junior, do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, negou o pedido,
alegando que a “culpa” de Sérgio ter sido baleado e ficado cego foi do próprio
fotógrafo, “que se colocou em risco”.
A decisão judicial foi
criticada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e
outras entidades de classe. Em resposta, fotógrafos também protestaram, posando
nas redes sociais com um tapa olho, numa alusão a piratas. Segundo a Article
19, inúmeras vítimas entraram com ações pedindo indenizações do Estado em
decorrência da violência policial nos protestos, mas até o momento a Justiça
não julgou as causas favoráveis aos impetrantes.
NAMORADOS AGREDIDOS
Na mesma noite de 13 de
junho, quando Sérgio perdeu a visão, o casal de namorados Gabriela Lacerda,
estudante de rádio e TV, e Raul Longuini, aluno de marketing, também foi
agredido por policiais com golpes de tonfa (espécie de cassetete) durante um
protesto do MPL que acontecia na Avenida Paulista, centro de São Paulo.
Os PMs expulsaram os
universitários e outros clientes que estavam sentados em um bar sob a alegação
que o loca teria de ser fechado em decorrência da manifestação. A truculência
policial foi presenciada pelo G1, que fotografou parte das agressões ao casal.
“ME BATERAM E ME JOGARAM NO
CHÃO. FORAM EXTREMAMENTE VIOLENTOS”, DISSE GABRIELA NAQUELA OCASIÃO À
REPORTAGEM.
JORNALISTA BALEADA
Ainda na noite de 13 de
junho de 2013, a jornalista Giuliana Vallone, da Folha de S.Paulo, foi atingida
por bala de borracha disparada por um PM da tropa de choque enquanto cobria a
continuidade da manifestação do MPL na Rua Augusta, no Centro da capital.
“VI O POLICIAL MIRAR EM MIM
(...) E ATIRAR. TOMEI UM TIRO NA CARA", POSTOU GIULIANA EM SEU FACEBOOK NO
DIA 14 DE JUNHO DE 2013.
"O médico disse que os
meus óculos possivelmente salvaram meu olho”, escreveu a jornalista, que levou
pontos na pálpebra por conta do ferimento, mas voltou a enxergar depois.
ESTUDANTE CEGO
No dia 7 de setembro de
2013, outra pessoa vítima da ação da PM de São Paulo durante manifestação na
capital paulista foi o estudante Vitor Araújo, que tinha 19 anos à época. Após
explosão de artefato explosivo lançado pela polícia, ele também ficou cego. Estilhaços
atingiram seu olho direito quando passava pela Assembleia Legislativa.
Os black blocs foram o
principal alvo da repressão da Polícia Militar durante as manifestações do Dia
da Independência.
“NÃO, NÃO SOU DO BLACK BLOC.
FUI COMO MANIFESTANTE”, REBATEU VITOR NUM VÍDEO GRAVADO À ÉPOCA, DENTRO DE UM
HOSPITAL, PELO GRUPO DE APOIO AO PROTESTO POPULAR (GAPP), QUE CONTA COM
SOCORRISTAS VOLUNTÁRIOS QUE ATUAM EM MANIFESTAÇÕES.
“Foi estilhaço de bomba de
efeito moral. O que eu falei: ‘a bomba de efeito moral quando explode, a
cápsula dela dispersa e ele foi atingido no olho por uma bomba de efeito
moral’”, diz Alexandre Morgado, um dos fundadores do GAPP, sobre Vitor.
O GAPP surgiu durante os
protestos de 2013 e conta atualmente com 12 socorristas treinados. Muitos
membros do grupo já foram vítimas de violência policial também.
“Esse é meu segundo
capacete. O primeiro eu perdi porque ele foi golpeado com cassetete, quebrou”,
lembra Alexandre.
MORTOS
Segundo a Article 19, oito
pessoas foram mortas durante as manifestações no Brasil em 2013. Levantamento
do G1, no entanto, cita que foram dez mortos. "Pessoas que foram mortas
diretamente pela ação da polícia ou que foram mortas por conta ali de todo
caos, que muitas vezes a intervenção do poder público ocasiona’, diz Camila.
Ocorreram 2.608 prisões de
suspeitos no país pelas forças de segurança entre 1º de janeiro a 31 de
dezembro de 2013, informa a Article 19. Muitas delas ilegais. Desse total, dez
detidos foram jornalistas.
“O que a gente viu foi uma
série de detenções arbitrárias, com base extremamente frágeis, sem
argumentação, sem justificativa legal”, lembra Camila. “A maioria dessas
prisões foi por prisão por averiguação. Ou seja, primeiro levaram essas pessoas
para a delegacia para depois entender e procurar qual suposto crime elas tinham
cometido".
"E ESSE É UM EXPEDIENTE
INCONSTITUCIONAL QUE ERA MUITO USADO NA ÉPOCA DA DITADURA MILITAR”, CONTA
CAMILA.
Os dados da Artigo 19 foram
obtidos por análises de reportagens jornalísticas, informações de movimentos
sociais e de entidades ligadas a jornalistas profissionais. A conclusão da ONG
é a de que após 2013 a polícia só sofisticou suas ferramentas de repressão aos
protestos, com a aquisição de blindados israelenses pela PM de SP e a criação
da tropa do braço, o que demonstra a intenção das autoridades em criminalizar
os movimentos sociais.
BALA DE BORRACHA
Desde 2013 a Defensoria
Pública de São Paulo busca nas diversas instâncias da Justiça a proibição do
uso de balas de borracha pela PM em manifestações. Em 2014, decisão judicial
havia vedado elastômero, nome técnico da bala de borracha, em protestos, mas
depois essa decisão foi suspensa pelo Tribunal de Justiça (TJ) em 2015. Em
2017, a Justiça voltou a autorizar balas de borracha em atos.
“NÓS TEMOS UMA AÇÃO CIVIL
PÚBLICA, QUE É A MAIS IMPORTANTE, NA QUAL NÓS DEMANDAMOS UMA DECISÃO JUDICIAL
QUE, ENTRE OUTRAS COISAS, PROÍBA A POLÍCIA DE UTILIZAR BALAS DE BORRACHA”, DIZ
O DEFENSOR PÚBLICO CARLOS WEIS, COORDENADOR DO NÚCLEO ESPECIALIZADO DE DIREITOS
HUMANOS DA DEFENSORIA.
“Não se pode utilizar balas
de borracha e muito menos, obviamente munição de caráter mais letal, para
dispersar uma manifestação”, continua Weis, que também busca uma padronização
junto a PM sobre a atuação policial em protestos.
O defensor sugere que haja
mais diálogo da PM com manifestantes antes de qualquer ação de repressão.
“Porque o que acaba acontecendo é o que nós temos visto. É que as balas são
disparadas a esmo, contra qualquer pessoa e algumas pessoas têm ficado
gravemente feridas. Inclusive com perda da visão, o que é gravíssimo”.
As manifestações do MPL,
além de conseguirem reduzir a tarifa de ônibus em várias cidades, inclusive em
São Paulo, serviram para que a então presidente Dilma Rousseff (PT) recebesse
seus membros e anunciasse um pacote de medidas indo desde a mobilidade urbana até
a discussão da reforma política no país.
PMS FERIDOS
Procurada pelo G1 para
comentar a atuação da Polícia Militar de São Paulo durante os protestos de
2013, a corporação se recusou a fornecer um porta-voz para conversar com a
reportagem. Por meio de nota, enviada por e-mail pela Secretaria da Segurança
Pública (SSP), a PM respondeu alguns questionamentos feitos (leia a íntegra
mais no final desta matéria).
Em linha gerais, a PM
informou que acompanhou mais de 9 mil protestos no Estado de São Paulo desde
2013 e que em apenas em 5% deles foi necessário o uso da força. Ainda segundo o
comunicado enviado pela SSP, o fotógrafo Sérgio Silva e o estudante Vítor
Araújo, vítimas que perderam a vista após ação policial, não colaboraram com as
investigações.
"DESDE 2013, AS
POLÍCIAS ACOMPANHARAM MAIS DE 9 MIL PROTESTOS, NO ESTADO, GARANTINDO A
SEGURANÇA DOS MANIFESTANTES E O DIREITO DA POPULAÇÃO. APENAS EM 5% DELAS, FOI
NECESSÁRIO USO DE TÉCNICAS DE CONTROLE DE DISTÚRBIO", INFORMA NOTA DA PM.
Além de jornalistas,
manifestantes e pedestres feridos, policiais militares também foram vítimas de
violência, muitas delas cometidas por black blocs, naqueles atos. A corporação,
porém, também não respondeu os pedidos da reportagem para que PMs falassem
sobre agressões que sofreram na época.
Entre os policiais
machucados estava o soldado da PM Wanderlei Vignoli, que foi cercado e agredido
por um grupo de pessoas que participava de protesto em 11 de junho de 2013 na
Praça da Sé, centro de São Paulo.
Ele escapou de ser linchado
após se atracar com um rapaz que pichava o prédio do Tribunal de Justiça (TJ).
Ferido, apontou sua arma para manifestantes na tentativa de contê-los, mas não
atirou. Em seguida, foi ajudado por outros participantes menos exaltados e
conseguiu fugir. Dois suspeitos de atacá-lo foram detidos à época.
“Fui atacado com muitas
pedras, diversas pedras e aí acabei caindo e perdi a consciência por alguns
segundos. Fui atacado porque eu estava protegendo o patrimônio, a sociedade e
população. Tinha também muitas pessoas voltando do trabalho, mulheres,
crianças”, disse Wanderlei em entrevista ao SP1 em 12 de junho de 2013.
O coronel Reynaldo Simões
Rossi, então comandante do policiamento da PM região central da capital, foi
outro policial que apanhou de black blocs durante manifestação ocorrida em 25
de outubro de 2013 perto do terminal de transporte Parque Dom Pedro II. Ele
ainda teria tido a arma roubada.
Ele chegou a ser protegido
por um policial disfarçado, que sacou a arma e ameaçou atirar. Reynaldo teve a
clavícula quebrada. A agressão foi fotografada e filmada por jornalistas e
manifestações. Vídeos com as imagens circularam no YouTube.
“Eu tenho as duas omoplatas
fraturadas, uma integralmente e outra parcialmente", falou Reynaldo em
entrevista ao Jornal Nacional em 26 de outubro de 2013. "Fomos
surpreendidos por um grupo de vândalos, de criminosos."
"TENHO LESÕES NAS
PERNAS E NO ABDOMEN E TENHO DUAS LESÕES NA CABEÇA”, DISSE O CORONEL REYNALDO À
ÉPOCA.
Alguns suspeitos de agredir
Reynaldo chegaram a ser detidos, mas negaram o crime e depois foram soltos pela
Justiça.
NOTA
DA PM
"A Polícia Militar
sempre atuou em protestos, garantindo a liberdade de expressão e o direito de
manifestação. Desde 2013, as polícias acompanharam mais de 9 mil protestos, no
Estado, garantindo a segurança dos manifestantes e o direito da população.
Apenas em 5% delas, foi necessário uso de técnicas de controle de distúrbio.
No ano de 2013, no entanto,
pessoas fora dos movimentos organizados, cometeram atos de vandalismo e
causaram danos sérios ao patrimônio público e privado. Mais uma vez, a Polícia
Militar garantiu o direito à manifestação e restabeleceu a ordem pública quando
necessário. Por se tratar de uma atuação que precisa sempre de aperfeiçoamento,
a Polícia Militar buscou novas estratégias de atuação e investiu em aquisição
de equipamentos e no treinamento do efetivo.
Todos os IPMs [inquéritos
policiais militares] instaurados à época das manifestações de 2013 foram
concluídos e relatados ao TJM [Tribunal de Justiça Militar]. Cabe salientar que
compete ao Ministério Público a análise dos autos e a propositura, ou não, de
denúncia, baseado na análise das provas materiais e testemunhais colhidas e dos
indícios de eventuais condutas ilegais.
Os casos do jornalista
Sérgio Silva e do estudante Vítor Araújo, em ambos a Polícia Civil instaurou
inquérito policial por portaria, pois não houve registro de boletim de
ocorrência pelas partes. Durante as investigações, as vítimas não colaboraram
nos inquéritos. Um deles foi relatado à Justiça em maio de 2016 e o Ministério
Público pediu arquivamento. O outro segue em andamento pela Polícia Judiciária.
Já a respeito do cerco ao
soldado Wanderley Paulo Vignoli, duas pessoas foram indiciadas. O inquérito foi
relatado e encaminhado ao Fórum. Sobre a agressão ao coronel Rossi, um homem
foi preso em flagrante. O inquérito, versando sobre tentativa de homicídio,
voltou com cota do Ministério Público, a qual foi cumprida e remetida ao Fórum,
em janeiro de 2014."
Fonte : G1
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