Para o cidadão comum, o que aconteceu na
sessão de ontem do Supremo Tribunal Federal (STF) foi simples: a mais alta
Corte do país decidiu proibir a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva.
Pouco importa que foi uma “liminar” (decisão provisória),
em cima de um “habeas corpus” (pedido) cujo “mérito” (conteúdo) nem sequer
chegou a ser analisado ou votado. O cidadão comum não sabe o que significam
essas palavras. Lula ficará solto, isso é o que ele entende.
O ex-presidente condenado por ter recebido como propina
um apartamento reformado especialmente para ele no Guarujá pode contar com sua
liberdade pelo menos até o próximo dia 4 de abril, quando o STF se reunirá de novo
para discutir o assunto.
Qualquer outro condenado no Tribunal Regional Federal da
4ª Região (TRF-4) começa a cumprir sua pena assim que se esgotam todos os
recursos. Lula não. O TRF-4 votará na próxima segunda-feira as últimas objeções
da defesa, chamadas de “embargos de declaração”. Elas não têm o poder de
alterar a sentença. Mesmo assim, pela decisão do Supremo, ele não será preso ao
final da votação.
A graça suprema concedida a Lula resulta de erros de
ministros que preferiam vê-lo preso e de um senso incomum de oportunidade de
sua defesa, representada pelo advogado José Roberto Battochio, que soube
aplicar a manobra certa na hora certa.
O primeiro erro foi cometido pela presidente, ministra
Cármen Lúcia, ao levar à votação o pedido específico de Lula para evitar ser
preso, em vez das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) que
permitiriam à Corte tomar uma decisão objetiva a respeito da situação ambígua
que cerca o cumprimento de penas depois da decisão em segunda instância.
Por uma decisão tomada em 2016, o STF autorizou, mas não
obrigou, o início das penas depois da decisão da segunda instância. Não foi
estabelecido um critério objetivo para dizer quando manter alguém preso ou
solto é inconstitucional. Na falta dele, campeia a indústria de “habeas
corpus”, “liminares” e quetais, sempre que o réu pode arcar com o custo de uma
defesa estrelada.
Aquilo que poderia ter sido uma discussão produtiva, com
repercussão sobre toda a Justiça brasileira, se tornou um debate específico
sobre o caso de Lula. Estava aberto o caminho para nossos ministros praticarem
seu esporte favorito: a manobra política.
O segundo erro foi cometido pelo relator do habeas corpus
de Lula, ministro Edson Fachin. Em vez de ler seu voto autorizando a prisão,
ele preferiu questionar a própria competência do tribunal para decidir. Com
base numa questiúncula técnica, argumentou que o habeas corpus não era o
“instrumento jurídico” adequado neste caso.
Abriu-se então uma nova brecha, esta agora para os
ministros exercerem um segundo esporte, em que têm proficiência inquestionável:
o lenga-lenga. E dá-lhe Lewandowski, Toffoli, Marco Aurélio, Fux, Celso,
Gilmar… Passaram mais de três horas falando aquele idioma que ninguém entende –
em tudo similar ao português – até decidir se poderiam tomar uma decisão.
Quando a discussão avançava, ficava claro que seria impraticável encerrar a
questão naquela sessão.
Foi aí que a defesa de Lula percebeu a oportunidade
criada pela procrastinação. Battochio argumentou que seria injusto cumprir a
decisão do TRF-4 pela prisão enquanto o julgamento estivesse em aberto. Como o
plenário do STF não se reúne nem hoje nem na próxima semana, tudo deveria ficar
em suspenso até o dia 4 de abril. Assim se decidiu.
Foi possível perceber, pelo voto dos ministros, que Lula
tem todos os motivos para ser otimista a respeito da decisão que eles tomarão
na volta do retiro pascal. Na primeira votação, para decidir se poderiam
decidir, dois daqueles de quem se esperava um voto contra Lula entraram no jogo
da procrastinação: Alexandre de Moraes e Rosa Weber. Placar: 7 a 4.
Na votação por aceitar a demanda de Battochio, a situação
foi um pouco mais apertada, 6 a 5, pois Moraes a rejeitou. Mesmo assim, Rosa
ficou do lado da defesa. Em 2016, ela foi contra cumprir penas depois da
decisão da segunda instância. Mas tem respeitado a decisão do tribunal, tanto
em decisões individuais quanto nas votações da Primeira Turma, a que pertence.
Esperava-se, por coerência, que mantivesse essa posição no caso de Lula – é,
afinal, um caso específico, não debate abrangente.
Não se sabe ainda como ela votará quando o julgamento for
retomado. Ao falar, contudo, Rosa deu a entender que, no plenário, tudo volta a
estar em aberto. Cada ministro estaria, portanto, livre para votar segundo a
própria consciência, não de acordo com a decisão colegiada anterior (tomada,
por sinal, em torno de outro habeas corpus, daí sua fragilidade).
A expectativa sobre o voto de Rosa, portanto, mudou. Como
lembrou o ministro Luiz Fux, num raro momento em que se falou português na
Corte, o pedido feito ontem por Battochio não é na essência diferente do habeas
corpus original que pede para Lula não ser preso. Trata-se, em ambos os casos,
de mantê-lo solto até nova decisão da Justiça.
Quando o STF voltar ao assunto, no próximo dia 4, a
expectativa é que se repita o placar da última votação de ontem, 6 a 5 a favor
de Lula. Se isso acontecer, terá mudado, para fins práticos, o entendimento da
Corte sobre as prisões pós-segunda instância, pois qualquer advogado poderá
invocar o caso de Lula para libertar seu cliente.
Estarão, por tabela, enfraquecidas a Operação Lava Jato e
congêneres, pois os acusados saberão que a prisão voltará a ser uma miragem,
desde que contem com recursos milionários para financiar os advogados
estrelados que dominam os caminhos das "liminares", "habeas
corpus", "méritos" e quejandos. Era o que Cármen e Fachin não
queriam que acontecesse. É, ao que tudo indica, o que colherão com seus erros.
E Lula continuará solto, em campanha pelo país.
Fonte : G1
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