Na
parede do quarto 9B, o retrato de uma menina chama a atenção. É uma garota
vestida de Papai Noel. Nos braços, segura um urso de pelúcia, mas não sorri.
"Ela tinha cinco anos nessa época", conta o pai José Ramirez, de 41.
Há 20 dias no Brasil, ele é
um dos 162 venezuelanos que, desempregados e sem ter para onde ir, decidiram
ocupar um prédio abandonado do governo do estado no bairro São Francisco, área
nobre de Boa Vista.
Imagens mostram rotina de
prédios ocupados por venezuelanos em Boa Vista
O edifício, vazio há pelo
menos 10 anos, foi sede da antiga Secretaria de Gestão Estratégica e
Administração (Segad), tem graves problemas estruturais e corre até o risco de
desabar, segundo a Defesa Civil estadual. Mesmo assim, há uma semana, o cenário
por lá mudou. As salas viraram 52 quartos, divididos nos blocos 'A' e 'B'.
O local não é o único
ocupado. Um outro grupo de venezuelanos também começou a usar, há cerca de um
mês, o Teatro Carlos Gomes, no Centro da cidade, para guardar objetos e se
abrigar da chuva. Nesta quarta-feira (14), a Polícia Militar esteve lá para
tirá-los, mas entrou em acordo. Foi definido que o prédio não pode servir como
abrigo, mas apenas como depósito, pois é inseguro.
Na antiga Segad, as
instalações são precárias. Lençóis velhos e manchados são usados como portas.
Não há energia elétrica, e os corredores são escuros. As torneiras estão secas.
A única fonte d’água – usada para matar a sede e para lavar roupas – são dois
canos que vêm da rua.
Também não há fogões,
panelas, cômodas ou geladeiras. Muitas paredes estão pichadas com palavras e
desenhos obscenos, marcas deixadas por invasores que, por anos, entraram e
saíram do prédio abandonado.
Sem a estrutura de uma única
cozinha, a alimentação é, na maioria das vezes, garantida por doações de
igrejas e de grupos da sociedade civil. Os banheiros também são improvisados, e
é normal ver gente tomando banho no pátio interno, onde um cano esguicha água.
Na parede do 9B, o retrato
da menina é um pedaço de casa. Foi pendurado por um frágil arame numa tentativa
de aliviar a saudade. José Ramirez chora quase todas as noites ao se lembrar de
casa, da família, da vida que tinha.
Na Venezuela, vivia em
Cumaná, no sul do país. Casado há 17 anos, tinha casa, carro e um trabalho
fixo. Costumava viajar com as filhas, a menor, hoje com nove anos, e a mais
velha, de 19, diagnosticada com a síndrome de Asperger, um espectro do autismo.
Sozinho no Brasil, ele se
preocupa a todo instante com a família. Quando ganha comida e vai se alimentar,
pensa na mulher, nas filhas e na mãe. Estarão famintas?
Dos 162 moradores
registrados no prédio da antiga Segad até o dia 13 de março, 88 eram homens, 52
mulheres e 22 crianças. Também havia bebês recém-nascidos e mulheres grávidas.
O dado que impressiona, no
entanto, é outro. Do contingente de moradores, apenas cinco conseguiram
emprego. Os outros adultos, não. Por isso, muitos se põem a caminhar por horas
a fio nas ruas de Boa Vista atrás de trabalho.
José Ramirez faz isso todos
os dias. Não costuma dormir direito, porque não tem uma cama para se deitar.
Passa a noite em papelões sob o chão. Mesmo assim, acorda cedo para procurar
emprego. Às vezes, anda tanto que fica machucado.
Foi depois de tanto
caminhar, dois dias depois de chegar a Boa Vista, que procurou na bolsa por um
talco para aliviar a dor dos pés. Na busca, uma surpresa lhe fez irromper em
lágrimas. Num dos bolsos da valise, encontrou a foto de Lucienny Ramirez, a
caçula.
"Penso que ela colocou
a foto na minha bolsa na noite anterior à minha viagem para cá, pois, no dia em
que vim, apenas me despedi dela em seu quarto".
Na pouca bagagem que trouxe
da Venezuela, além da foto, só tinham roupas, um pouco de comida e um livro de
auto-ajuda que, em um dos capítulos ("Retrato de um perseverante"),
conta a história de Abraham Lincoln, o presidente norte-americano que chegou ao
poder após sucessivas derrotas eleitorais.
"A lição é muito
simples: só se fracassa quando você parar de tentar", lê José Ramirez,
explicando que o texto tem sido uma motivação nos dias de angústia e de longas
caminhadas atrás de trabalho.
Na sede do Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE-RR) em Boa Vista recordes foram registrados. Nos
últimos três anos foram emitidas 4.100 carteiras de trabalho para venezuelanos.
Em 2014, antes da crise se agravar na Venezuela, foram só 30.
A inserção no mercado formal
de trabalho, no entanto, ainda é pequena. O Sistema Nacional de Emprego (Sine)
da Secretaria de Trabalho e Bem Estar Social de Roraima (Setrabes), por
exemplo, só conseguiu empregar, do fim de 2016 para cá, 12 venezuelanos. Antes
disso, o órgão não monitorava o número de atendimentos feitos aos imigrantes.
Ocupações em prédios
públicos
O reflexo do desemprego
entre os imigrantes se vê por todos os lados na capital que já tem, 40 mil
moradores venezuelanos, o equivalente a 12% da população local, de 330 mil
habitantes, segundo estimativa da prefeitura.
Os três abrigos da cidade
estão cheios. Juntos, eles têm um total de quase 2 mil moradores, o que não é
nem de perto o suficiente para receber o crescente número de imigrantes
recém-chegados. O governo estuda instalar mais um abrigo na capital.
A Polícia Federal diz que
por dia 800 venezuelanos cruzam a fronteira com o Brasil. Alguns sem dinheiro
para passagens viajam até mesmo a pé entre Pacaraima e Boa Vista. O percurso,
de 215 km, é marcada pela fome, sede e cansaço.
Além de ficarem em praças -
uma delas com cerca de 1,2 mil moradores - os venezuelanos se espalham pelas
ruas e agora começam a viver em prédios públicos na capital Boa Vista.
William Mata, de 57 anos,
foi um dos líderes da ocupação do antigo prédio da Segad. Ele e outros seis
imigrantes ouviram falar do local abandonado e foram até lá.
Depois de conversar com um
advogado brasileiro e um padre, resolveram por tornar o prédio uma moradia
coletiva. A decisão foi tomada frente às chuvas que caíram nas últimas semanas
e à ameaça de um inverno rigoroso.
Fizeram uma grande limpeza
durante três dias. Removeram entulhos, juntaram o lixo e cortaram o mato que
havia tomado conta da estrutura. Em 6 de março, muitos imigrantes que viviam
principalmente na praça Capitão Clóvis, no Centro, se mudaram para o novo
endereço.
Os quartos foram divididos
entre famílias, separados em dois blocos e numerados. Os
"proprietários" ganharam ainda uma espécie de título definitivo do
novo lar. Os nomes dos ocupantes dos aposentos foram escritos na parede, logo
na entrada dos quartos.
Logo após a mudança, regras
muito claras foram criadas para facilitar a convivência. Foi proibido o consumo
de drogas ou ácool. Quem tem antecendentes criminais também não é bem vindo no
local.
"Pedimos que os novos
moradores tragam a ficha de antecedentes criminais para garantir", explica
Argenis Marcano, de 37 anos, um dos seis responsáveis pela moradia coletiva.
"Não queremos pessoas más aqui".
Hoje, 10 dias depois de
aberto, o abrigo improvisado já está ficando conhecido. Novos moradores chegam
todos os dias. Yusmelly Andreina, de 37 anos, está em Boa Vista há cinco dias.
Consigo trouxe a filha, uma bebê de dois meses. "Vim para cá por indicação
de uma amiga que já estava no Brasil. Aqui há comida".
Um dos ocupantes está
doente. É Miguel Moreno, de 37 anos. Com hemorróidas e sem conseguir andar
direito, ele precisa de um remédio que custa R$ 92, mas não tem nenhum centavo.
"Como estou doente, não consigo ir atrás de trabalho. Tenho que ficar aqui
e esperar para ficar bom".
Desde que chegou ao Brasil,
há dois meses, conseguiu fazer bicos e ganhar pouco mais de R$ 1 mil. A maior
parte do dinheiro, no entanto, não ficou aqui. Mandou R$ 900 para manter a
mulher, os dois filhos e a mãe na Venezuela.
"Na Venezuela eu tenho
uma barbearia, mas o que ganhava ficando lá não dava para viver. Você trabalha
um mês para comer um dia. Se o governo Maduro sair, irei voltar. Se não, irei
ficar aqui. Quero arranjar trabalho e trazer meus filhos para cá".
Ele diz que depois que
decidiram ocupar o teatro também buscaram por outros prédios abandonados para
viverem em Boa Vista. Um deles foi o da antiga Secretaria Estadual de Educação
de Roraima, também no Centro da capital. Porém, segundo conta, foram impedidos
de permanecer no espaço. "A polícia chegou e nos mandou ir embora".
A moradia no teatro, no
entanto, também é incerta. Na tarde dessa quarta, dois policiais militares
estiveram no local para cumprir uma ordem verbal de remoção.
Os PMs alegaram que o prédio
está condenado e tem risco de desabar, mas não conseguiram retirar ninguém.
Acordaram com os imigrantes que o local só pode ser usado para guardar objetos,
e não como abrigo. A resposta dos venezuelanos foi em forma de agradecimento e
de apertos de mão.
“Graças a Deus ficamos aqui.
São muitas coisas e muita gente. Não temos mais para onde ir ", disse
Marta Rivas, de 51 anos.
Ocupações arriscadas
As ocupações da antiga Segad
e do Teatro Carlos Gomes são arriscadas, afirma o coronel Dorideson Ribeiro,
chefe da Defesa Civil de Roraima. Ele diz que como os prédios estão fechados há
pelo menos uma década, pode haver risco de desabamento principalmente no
período das chuvas.
"Já tivemos relatórios
da Secretaria de Infraestrutura e do Corpo de Bombeiros que apontam situações
de risco nos prédios, até porque eles estão abandonados. Todo prédio sem
manutenção tem risco de desabar. Não é seguro ficar lá, mas entendemos a
vulnerabilidade dessas pessoas", afirmou.
Ele disse que não há
previsão para retirada dos imigrantes que vivem na antiga sede da Secretaria de
Administração, mas que é planejado fechar em breve a entrada do Teatro Carlos
Gomes, onde as instalações são mais inseguras.
"A imigração
venezuelana para Roraima é muito intensa. Quanto mais abrigos são feitos, mais
são necessários. Estamos montando outro justamente para reunir todas essas
pessoas que estão nas ruas, praças e prédios públicos", finalizou.
Fonte : G1
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